A eterna discussão sobre a decadência da democracia liberal e das suas instituições começa, invariavelmente, a partir do mandato presidencial de Donald Trump. O seu tipo de discurso, postura e modus operandi foram de tal forma revolucionários que se espalharam um pouco por todo o mundo – e Portugal não foi exceção.
Só que por cá, bom, as personalidades mais proeminentes desta trupe são André Ventura e Sérgio Conceição. Não em ponto de igualdade, claro, mas partilham muitas semelhanças: a liderança é top-down porque o chefe é supremo, e os seus ensinamentos são a verdade absoluta – é contra tudo e contra todos, porque o mundo está contra mim; e se o mundo está contra mim, não tenho de ouvir e calar, tenho sim de falar e ser ouvido. A questão aqui é: se falar muito eventualmente leva à compreensão do nada, isso quer dizer que, em bom português, ambos tiram argumentos do cu e, se assim é, são facilmente refutáveis. Se a liderança é top-down e escorre para baixo com a graça de um anjo tombado, a desconstrução desta mentalidade tem de se fazer exatamente no sentido contrário, de baixo para cima, bottom-up, começando pelo conhecimento e não pela simples retórica por si só.
O herói improvável da nossa democracia, para estes efeitos, é (juro) Deejay Telio, que em tempos disse “boca fechada, mente aberta”. Na sua génese – basta ler nas entrelinhas –, o artista quer dizer que ouvir e compreender é mais importante do que falar. Este ponto de vista é, naturalmente, mal interpretado por aqueles que teimam em adotar a ótica de “boca aberta, mente fechada”, isto é, falar muito; ouvir pouco; compreender nada. Falar muito significa, necessariamente, ouvir pouco e isso, estatisticamente falando, leva muitas vezes à compreensão de nada, o que vicia o ciclo.
Uma mente fechada é como uma lapa num rochedo que só muda a sua condição se for forçada a tal, e como na vida real não podemos usar facas, usamos palavras, que conseguem magoar de igual maneira. A única maneira de combater “boca aberta, mente fechada” é “boca aberta, mente aberta” – e a razão não podia ser mais simples e matemática. Se boca e mente fechadas são vistas como algo negativo, e boca e mente abertas como algo positivo, vamos a contas:
‒ Se tanto a mente como a boca estão fechadas, embora a intenção seja má, não há nenhuma ação necessariamente prejudicial: menos com menos dá mais, embora, francamente, ache altamente improvável que o cidadão disruptor aceite renunciar-se ao silêncio e à inação;
‒ Se uma das duas está aberta e a outra está fechada, ou a intenção é boa mas a ação inexistente, ou a ação em si é má: mais com menos dá menos, e é exatamente neste estado que se encontra a nossa democracia, já que a inação dos bem-intencionados abre espaço à disrupção acima mencionada;
‒ Se tanto a boca como a mente estão abertas, tanto a ação como a intenção são boas: mais com mais dá, naturalmente, mais.
Num quadro normal, a tese de Deejay Telio tem fundamento. “Boca fechada, mente aberta” é ótimo, mas apenas quando falamos com malta que é “boca aberta, mente aberta”. Ouvir e falar são ambos bons, quando necessários. Menos pode (e deve) ser mais, mas apenas se soubermos a priori o que é que esse “mais” esconde. O mesmo se passa ao contrário, claro: o mais só o é se tivermos noção do menos. Daí que, naturalmente – e o Deejay Telio concordará comigo – não se deve discutir com a extrema-direita da mesma forma que discutimos com o restante espetro político. Estenderia até este meu pensamento dizendo que qualquer mudança de posição política implica um tratamento diferente, já que cada posição política indica, obrigatoriamente, prioridades distintas.
Em suma, e principalmente porque estamos em altura de eleições: ouçam, falem, calem-se e expressem-se à vontade; até porque, em situações diferentes, ouvir e compreender acabam por ser tão importantes como falar, mas só se com uma mente aberta – apenas isso leva ao conhecimento.
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