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Foto do escritorNuno Matela

Radiografia

Cinco meses após a tomada de posse do XXIII Governo Constitucional, cai a primeira peça do elenco governativo liderado por António Costa.

Esta foi a notícia que fez manchete na manhã de terça feira, 31 de agosto de 2022, quando o país acorda com a nota à imprensa da demissão daquela que, durante dois anos, foi o rosto do combate à pandemia de COVID-19, em Portugal.

Depois de meses de notícias que davam conta do caos nas urgências dos hospitais nacionais, das infindáveis listas de espera para consultas e cirurgias, da falta de médicos de família, dos sucessivos alertas deixados por médicos, enfermeiros e outros profissionais da área, das milhões de horas extraordinárias acumuladas, do fraco reconhecimento das carreiras, Marta Temido considerou não ter condições para continuar em funções. Aparentemente desgastada no exercício das funções governativas pela dureza da pandemia, a reação de um deputado do partido que sustenta o Governo enfatizava a inversão da trajetória de desinvestimento iniciada a partir de 2015. No entanto, aquilo que é evidente é a degradação do sistema público de saúde, conquista maior do período democrático, o que vem confirmar que, no nosso país, não raras vezes, quando há um problema estrutural e que necessita de soluções estruturais, atiram-se-lhe mais uns milhões e aguarda-se que ele se resolva sozinho.

A substituição das peças governativas, a 10 de setembro, colocou nas mãos do novo titular da pasta o desafio de levar à prática o novo desenho do sistema público de saúde, desenvolvido pela equipa que cessara funções. Uma das principais inovações no Novo Estatuto do Serviço Nacional de Saúde passa pela criação da Direção Executiva do SNS, um instituto público com competências para emitir regulamentos e orientações vinculativas para todo o SNS, bem como para coordenar a resposta das unidades de saúde, assegurando o funcionamento em rede e a melhoria do acesso aos cuidados de saúde, por todo o país. O que esperar deste novo organismo? Desde logo, a competência necessária para a gestão operacional da resposta aos milhões de utentes que, diariamente, recorrem ao serviço público de saúde, e a coordenação entre os vários níveis de cuidados, fazendo- o com relativa autonomia face ao Ministério da Saúde. Porém, essa autonomia não significa a desresponsabilização da tutela, já que continua a ser o Governo o responsável pela definição da política de saúde do país. Importante também é a melhoria na gestão dos recursos financeiros alocados ao setor.

Num debate que tive o prazer de moderar, no passado mês de outubro, na Faculdade de Medicina de Lisboa, entre dois investigadores da área da economia da saúde, foi apontada a necessidade de maior flexibilidade de gestão do SNS, defendendo- se o maior envolvimento dos profissionais. Pedro Pita Barros e Eduardo Costa, da NOVA SBE, colocaram a tónica não tanto no aumento do financiamento no SNS, que consideram ser muito significativo, mas, antes, na gestão dos fundos destinados à saúde dos portugueses. Um aspeto curioso em relação a esta questão é a tradicional “antipatia” entreTerreiro do Paço e a Avenida João Crisóstomo, que é como quem diz entre os Ministérios das Finanças e da Saúde, respetivamente. Veremos se o peso político de Manuel Pizarro é suficiente para conseguir os meios financeiros no âmbito dos Orçamentos de Estado. Para 2023, estão previstos mais cerca de 1,2 mil milhões de euros. Mas retomo uma ideia já abordada. A gestão deve ser rigorosa e mais eficiente. Importante, também, tal como foi apontado pelos investigadores, é a maior flexibilidade em relação aos modelos de Cuidados de Saúde Primários (CSP), onde reside um problema de décadas: a falta de médicos de família. As Unidades de Saúde Familiares (USF), em que todos os utentes inscritos têm médico de família, podem estar organizadas segundo os modelos A ou B, sendo este último caracterizado pelo maior amadurecimento organizacional e por um conjunto de incentivos que vista a potenciação das aptidões e competências de cada profissional, premiando-se o desempenho individual e coletivo, tendo em vista o reforço da eficácia e da acessibilidade dos cidadãos aos cuidados de saúde primários, com importantes ganhos em saúde, enquanto que, no primeiro, não há lugar a incentivos financeiros, mas, como os rácios entre profissionais de saúde e utentes estão garantidos, a tutela vai propondo que se atinjam determinadas metas a atingir. Já nas Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP) não existe um rácio entre profissionais e utentes, uma vez que estas devem dar resposta a utentes não inscritos, pelo que não é exigível e expectável que determinadas metas sejam cumpridas. Os dados mostram que as USF promovem um acompanhamento mais adequado à doença crónica, na resposta à doença aguda, na promoção da saúde e na prevenção da doença, com destaque para as USF-B. Pedro Pita Barros questiona se todas as UCSP devem ser substituídas por USF. Mais uma vez, coloca-se a questão da flexibilização, na medida em que “poderá haver profissionais de saúde que não se sintam motivados a assumir a autonomia que as USF exigem”, sendo importante perceber se o modelo de incentivos agrada a todos eles” (Fonte: Debates NOVA Health Care Iniciative, 2018). Em relação a este assunto, não podemos estandardizar as questões ao ponto de ignorarmos as subjetividades inerentes a cada utente, pelo que é sempre relevante perceber de que forma são parametrizadas as diferentes dimensões dos CSP.

Muito mais haveria a analisar no que toca à saúde, mas aqui deixo esta reflexão para ajudar a que não percamos de vista um setor que nos é tão caro.

Se aos milhões do PRR e ao aumento do financiamento do SNS, previsto no Orçamento do Estado para 2023, se juntar a vontade efetiva de resolver e reformar e que essa vontade se torne uma realidade e não apenas discurso bonito para vender como ladainha nas vésperas eleitorais, Portugal assistirá ao reforço da qualidade do seu serviço público de saúde, aliando a isso uma maior capacidade de fixação de profissionais no país e, em particular, no SNS (com a ressalva de que as universidades portuguesas não formam médicos para o SNS; formam médicos!), para que se faça dele um sistema de saúde mais atrativo e competitivo, moderno e organizado e que cumpra com qualidade a função para a qual foi concebido.

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