"Um boletim de voto tem mais força do que uma espingarda”. Esta frase é o suficiente para balizar os acontecimentos do dia de ontem, na Assembleia da República.
Se é verdade que o significado mais óbvio da frase de Lincoln – o de que é preferível uma democracia a um regime autoritário e belicista – só será evidente para os 80% que votaram em partidos democratas, também é verdade que a imagética da mesma nos diz mais sobre o nosso sistema.
Nas diversas declarações que o líder do Chega fez, durante o dia de ontem, repetiu diversas vezes a frase “Não podemos ignorar a vontade de 1M de portugueses”. Ora, importa deixar nota de que, embora vivamos numa democracia parlamentar, representativa, esta mesma representação é apenas delegada. Quer isto dizer que, na realidade, a representação dos eleitores se esgota no exato momento em que a cruz está terminada, o boletim dobrado e inserido na urna.
Tecnicidades à parte, o voto de 1M de portugueses foi, efetivamente, mas forte do que uma espingarda. A força dada a 50 deputados que, por sua vez, utilizaram o seu direito de voto para bloquear o bom funcionamento da instituição mais importante da nossa democracia é potencialmente demolidora. Pior, o que se viu ontem foi um rasgo de uma partidocracia mais preocupada em reagir a quente de acordo com os seus interesses do que em fazer avançar uma legislatura que, por si só, já seria frágil.
Por outro lado, seria prudente que os partidos que não se revêm nesta paralisação – leia-se, os partidos do espectro democrático – se comportassem como aquilo que devem ser, partidos sérios. Porque não votaram – sim, utilizo o plural porque, em situações normais, os deputados não deveriam ter disciplina de voto nesta situação – os deputados do Partido Socialista a favor de José Pedro Aguiar-Branco? Porque não deixou, o PSD, espaço à eleição de um candidato da esquerda, após o seu ter falhado a eleição? Acima de tudo, porque é que continuavam, às 23h00 os deputados a ver o WhatsApp para saber em quem votar, em vez de agirem como devem e votarem em quem acham que será o mais bem qualificado para exercer a posição de 2ª figura do Estado?
Os líderes partidários digladiar-se-ão sobre alianças – “O PS aliou-se ao Chega!”, “O PSD aliou-se à Direita radical” – enquanto nós, os eleitores, vemos de fora aqueles que foram eleitos para resolver os nossos problemas na Saúde, na Habitação, na Economia, no Ambiente e em todas as outras áreas de governação, sem conseguir ultrapassar um ato administrativo. Enquanto uns esgrimam insultos vazios, nas suas poltronas de coro, o mundo real segue cá fora, à espera que a espingarda que lhes passámos seja usada como recipiente para a flor vermelha e não para disparar contra a República. Neste tiroteio, somos nós que somos apanhados no fogo cruzado, proveniente das trincheiras que, lentamente, fomos cavando.
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